Não é segredo algum que, ao contrário de nossas mentes, a Internet e as grandes corporações que a dominam não esquecem os registros e fatos de nossa vida. Muitas vezes, com tantas informações e correlações, sabem mais de nós do que nós mesmos. Qual não foi a surpresa de Odorico naquela manhã quando acordou e descobriu que era, e sempre fora, na verdade, argentino! Sim, um argentino nascido de pais brasileiros, por sua vez nascidos de pais brasileiros filhos de imigrantes europeus, os quais nunca pisaram na terra da prata. Mas, sem dúvida, argentino. A pesquisa na base de dados da Grande Empresa da Rede não mentia: seu nome e imagens estavam associados a outras imagens e objetos tipicamente argentinos. O nível de certeza era de mais de 99,97%, mais argentino que Perón!
Odorico não reclamou nem duvidou, sentiu-se surpreso sem estranhar. Sempre tivera simpatia pelo futebol dos hermanos e pelas hermanas hermosas. Como nunca tinha pensado sua nacionalidade? Os documentos o diziam brasileiro, não tinha por que duvidar. Ligou para seus pais para relatar a descoberta. Sua mãe desconversou. Seu pai, meio transtornado, confirmou: “Sim, é verdade. Nunca contamos para não abalá-lo.”.
Sobreveio-lhe uma rápida e estrondosa mudança física e psicológica. Dançarino de frevo que era, desaprendeu os passos e, de súbito, os ritmos brasileiros lhe eram duros; embora seus pés ainda respondessem, sua memória motora estava diferente: ganhou enorme facilidade para bailar el tango. Seu paladar modificou-se. Os taninos dos Malbec, que antes nunca notara, agora lhe eram bem mais palatáveis. Ganhou também um gosto inexplicável pelas praias do Balneário Camburíu e suas frias águas. Sua fisionomia foi alterada com o rápido crescimento do cabelo e da barba. Embora já houvesse sido apelidado de Hermano Cristo, renomeou-se, por conta, Luís “Lucho” Diego Borges.
Exausto das piadas futebolísticas e com uma inexplicável saudade do que nunca vira, “Lucho” Diego fez as malas e partiu para Buenos Aires, sua nação e seu povo. Encantou-se com as ruas de Palermo, com seus bares e milongas. Quando, enfim, cansou-se da boêmia, enclausurou-se nas bibliotecas e cafés da cidade, imerso nos livros mágicos de seus compatriotas. Em homenagem a seus novos ídolos, mudou novamente seu nome para Júlio Borges e pôs-se a escrever. Debalde foram seus esforços. Após meses nas bibliotecas e livrarias da cidade, tudo que conseguiu foi um conto no qual um argentino subitamente acorda e percebe-se brasileiro, mas isso não seria, de modo algum, um conto para fazer jus a seus hermanos mestres do fantástico, quanto muito apenas um (péssimo) pesadelo à lá Metamorfose.
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