Borboletas da Sorte

O menino corria em frente a casa. Sorria, era seu aniversário de um, dois, três, quatro, cinco anos. O cheiro de terra e de chuva preenchia-o sutilmente, enquanto fixava o olhar em um ponto, com o sol a pino podia ver redemoinhos de calor — seu poder secreto. O grande quintal era o seu mundo para todas as brincadeiras: rodava o pião, escondia-se da avó e da tia, brincava de pega-pega quando os primos o visitavam. Mas não podia, sabia, ir na direção das árvores nem chegar perto das plantações ou do curral.

— Não vá longe, menino! — gritou a avó, Dona Assunção, sentada na cadeira de forro de palha na varanda do casarão, enrolava os brigadeiros para a festa mais tarde, enquanto tomava conta do pequeno Aurélio. Já estava crescido, cada vez mais parecido com o pai. Mas tinha um jeito de se ausentar das coisas, entretido no caminho das formigas, nas cores e aromas das flores e outras miudezas que a lembrava de sua filha – morta durante o parto.

— Oh, Vó! Oh, Vó! Rápido!

Dona Assunção acordando de seus pensamentos, levantou da cadeira e foi acudir o garoto — perdido de sua vista, rumava entre as árvores, moleque arteiro.

— Boboletas. Boboletas, Vovó.

Sobre a cabeça do menino voavam sete borboletas. Todas possuíam múltiplas cores, mostrando um espectro semelhante a um prisma, num redemoinho de voos e cores deslumbrante.

— Aurelinho! Eu já falei… — Vó Assunção preparava-se para a bronca, mas vendo o sorriso do neto e o espetáculo dos insetos voadores acalmou-se, recomeçando: — Meu filho, não vá para longe da casa, onde eu não possa vê-lo. É perigoso. — Aurélio não prestava atenção, absorto na dança das borboletas.

— Mas que maravilha, Linho. — disse a avó, após voltar para a varanda e sentar-se com seu neto no colo. — Você sabia que cada pessoa tem um bicho da sorte? Em cada aniversário eles nos aparecem para revelar como será o nosso ano. E borboletas são tão belas. Logo sete e coloridas daquele jeito! Seu ano vai ser muito feliz e repleto de alegrias, meu filho.

— Então meu ano vai ser feliz, Vó? Vou brincar com o primo Carlos e prima Cármen. E depois comer bolo de chocolate e aí correr, e aí…

— Sim, tudo isso e muito mais. Sabe, Linho, borboletas também eram o animal da sorte da sua mãe. É um ótimo sinal tê-las como suas amiguinhas. Elas são tão solícitas e encantadoras.

E o pequeno abriu um grande sorriso.

* * *

O pai de Linho era doutor, auxiliava no que podia nos assuntos da fazenda, mas, coitado, nada sabia de trabalho no campo. Conheceu senhorita Rosana no magistério e casaram-se poucos meses depois. Até tentou aprender a lidar com a terra, mas o esforço foi em vão — o doutor era homem almofadinhas, só entendia de palavras bonitas, livros e espertezas da cidade. Após a morte de Seu Aurélio, dedicou-se ao ofício de homem do direito, e quando sua mulher passou, retornou de vez à cidade deixando o garoto aos cuidados da avó.

A infância do pequeno seguia feliz como há de ser a infância de um menino mimado pela tia e pela avó. Cresceu na fazenda do Seu Aurélio, localizada no vilarejo de Mondaco; ou no interior do interior, como gostam de falar os moradores da vila para se referir à pouca ou nenhuma reputação que o nome do lugar desperta até nas cidades limítrofes. Hoje Mondaco não chega a dois mil habitantes, uns quinhentos deles no centro e os demais nas fazendas, sítios e outras roças. O vilarejo envelhece, com os jovens e adultos indo trabalhar na cidade, procurando oportunidades de vida menos entediantes.

— Vó. O que significa ver uma borboleta preta? — indagou Aurelinho a avó. Era seu aniversário de oito anos.

Dona Assunção empalideceu. Seu rosto ficou lívido e olhou para o menino com muita apreensão.

— Você viu alguma assim, Linho? — disse com a voz fraca, como se as cordas vocais hesitassem em provocar uma resposta.

— Não, Vovó. É só pra saber mesmo. Eu vi as mesmas de sempre.

— Não me assuste assim, menino. Reze para nunca ver borboletas pretas. Elas não anunciam nada de bom, são malvadas e traiçoeiras; continue vendo as coloridas, criança, elas te farão mais feliz.

— E as verdes, Vó? E as azuis, amarelas e vermelhas?

— Borboletas verdes são as favoritas de seu pai. — disse a velha rindo, com a barriga proeminente a balançar. — Elas anunciam um ano de trabalho e prosperidade, colheita farta. Já as amarelas representam o novo, a vida. Com as azuis vêm a tranquilidade, elas proclamam a paz e a felicidade que um ano sereno nos propicia. Ah… as vermelhas. As vermelhas são a paixão. A paixão por uma garota, a paixão por um sonho. Mas cuidado, o que trazem costuma ser passageiro. As rosas são mais confiáveis, elas nos mostram o amor verdadeiro.

— E qual que é o seu bichinho da sorte, Vó?

— Eu também já tive animais da sorte, Aurelinho. Mas há muito tempo me abandonaram. Não eram borboletas como as suas e as de sua mãe. Eram cobras. — Dona Assunção silenciou olhando distante, rumo às plantações. — Cobras são desconfiadas, muitos anos elas nos evitam, ficam ofendidas com algum comentário e se escondem. Algumas podem até te atacar por raiva ou ciúmes. Ainda assim, me ajudaram muito nessa vida. Seu avô Aurélio se enfezou com uma má sorte predita por uma delas e se pôs a caçá-las. Matou todas as cobras da fazenda, nunca mais as vimos por aqui. Continuaram a aparecer para mim em sonhos por um tempo. A última vez foi há quase nove anos, quando sonhei com uma cobra caninana no dia dos meus anos… e desde então sumiram.

— E o que a cobra mostrou para a senhora essa vez?

— Muita tristeza, meu filho. Mas também muita alegria. — disse a avó, olhando para o menino enquanto acariciava seus cabelos.

* * *

Aos doze anos Aurelinho não deu importância à borboleta vermelha que apareceu a ele junto a outras coloridas. Até mesmo zangou-se com os comentários jocosos de sua tia, que, percebendo sua irritação com assunto, vivia a aborrecê-lo perguntando se já estava apaixonado por alguma amiguinha ou coleguinha do grupo escolar.

Reiniciadas as aulas do grupo, o destino foi impiedoso. Aninha tinha doze anos, completos um mês após Linho, seus cabelos morenos eram cacheados, os olhos castanho claros — quase verdes. Era garota da cidade, seus pais a deixaram a cuidado dos avós, assim como ele, e agora passavam a frequentar a mesma escola.

Foram semanas de preparação. Até pediu dicas para os primos mais velhos. Não queria que os amigos soubessem, temia ser algo de chacotas. Aproximou-se implicando com ela no início, fazendo troças, mas na verdade não queria chateá-la. Tornaram-se amigos, com o tempo deram-se as mãos e em um final de tarde, um beijo tímido. Depois nunca mais a viu.

Aninha voltou a morar com os pais e deixou o grupo escolar. Aurelinho jurou que não mais daria ouvidos a essas criaturas. Que ficassem onde quisessem, mas bem longe dele. Ou ele faria como seu avô e expulsaria todas da fazenda. Todas.

Um ano depois Dona Assunção trazia sorridente o presente do neto, roupas novas e uma bola. Abraçou o garoto dizendo:

— Muitas felicidades! Sua vó o ama muito. — Mas o garoto estava sério. Olhando para a frente sem dizer uma palavra.

A avó sentiu um coceira no pescoço e de relance viu algo voando.

— Borboleta, Linho? Olha como elas não te abandonam, menino. — Aurélio continuava mudo. Súbito pareceu acordar.

— Sim, Vó. Preta.

Dois meses depois a velha adoeceu, aparentava estar conformada, andava pela roça não triste, mas com um ar solene, observava as coisas com ternura e nostalgia. A doença foi rápida. Passava a maior parte dos dias de cama, não falava coisa com coisa. Nos momentos de lucidez tentava consolar o garoto.

— Não se culpe, meu filho. Nem culpe as borboletas. Elas apenas nos mostram o que a fortuna nos reserva. Não podemos mudar o destino. Ainda mais, eu que já estou bem velhinha e cansada anseio por reencontrar o seu avô. — O menino chorava, sentia-se impotente. —  Ouça o seu pai, Aurelinho. Ele é um bom homem, ouça o seu pai.

 Após a morte da avó, Aurélio se tornou melancólico. Passava horas no quarto vazio vendo as lembranças de família que ela guardava em um grande baú ao lado da cama. Fotos de parentes, algumas emolduradas, outras em preto e branco, não sabia se foram reveladas assim ou se perderam as cores com o tempo. O laço de cabelo de sua mãe, o que ela usou na formatura do grupo escolar. Sobre a cama, no centro da parede, estava a espingarda de Seu Aurélio. Vó Assunção a mantinha brilhando, polindo-a sempre que começava a esmaecer. Agora quem cuidaria da lembrança do avô?

Foi morar na cidade com o pai. Acharam melhor que o menino tivesse novos ares, esquece um pouco a doença da velha e de suas histórias de superstição e contos de fadas. Logo adaptou-se à vida de cidade grande.

* * *

Aurélio cresceu e formou-se em direito. No ano de sua formatura viu uma borboleta vermelha e verde em seu aniversário. Não procurava pelos bichos em seu dia. Os meses se passaram e nem dinheiro nem paixão sobrevieram a ele. Besteira acreditar nas superstições da avó, eram apenas isso: crendices. Mas uma dúvida começou a brotar do fundo de sua orelha direita, não era uma pulga coçando, era mais como uma semente — crescendo e ganhando forma devagar. Não queria seguir a carreira do seu pai, mas regressar ao campo e tocar a fazenda da qual seria o único herdeiro, já que sua tia nunca casou nem teve filhos. Entendeu, pois, o significado da borboleta rubro-verde, descobrira sua vocação, a paixão que o faria ser próspero. Não confiaria, contudo, na sorte. Faria o seu próprio destino.

Aurélio passou algumas semanas na cidade fazendo os preparativos da mudança e retornou para Mondaco. Levou consigo uma encomenda muito especial: diversas espécimes de borboletas verdes, azuis e verdes-azuis — algumas vindas do estrangeiro. Não as manteve cativas, pois lembrou-se do alerta da avó quando dias antes de completar dez anos quis capturar uma borboleta colorida para garantir a boa venturança. “Não pode, Linho. Traz má sorte; o bicho pode se entristecer e até virar uma borboleta preta. Deus me livre!”.

As espécies invasoras dominaram a região — quase não se via as coloridas nativas que abundavam o local há poucos anos. Aurélio e os demais moradores e trabalhadores podiam vê-las todos os dias. Os anos seguintes foram de muita prosperidade para a fazenda de Seu Aurélio, muitos esqueceram que a fazenda chamava-se assim pelo avô e não pelo neto. Além disso, foram anos muito estáveis — “tudo corre bem para todo mundo, como tem de ser”, dizia o jovem fazendeiro.

Ao fazer vinte e oito anos avistou uma borboleta rosa, mesmo sem ter mandado trazer delas, Rosa também era o nome da jovem que conheceu poucas semanas depois. No ano seguinte casaram-se e no aniversário de trinta anos de Aurélio, Rosa estava grávida de sete meses.  Era noite no dia, nenhuma das amigas havia aparecido a ele, quando avistou uma delas pousada no sofá, ao lado de sua esposa. No primeiro relance viu a cor amarela, era óbvio, amarelo simboliza uma vida nova, o bebê vai nascer saudável; mas ao reparar melhor notou as listras, as malditas listras pretas e amarelas. Não sabia o significado daquilo — desejava que a velha fosse viva para perguntar. Devia ter trazido mais das verdes, garantir um ano bom na fazenda, sentiu-se desleixado por isso. Sentiu medo.

Lembrou das conversas com a avó e algo lhe ocorreu. Procurou na estante de livros na sala um livro do qual tinha pavor de abrir na infância, o guia ilustrado das Serpentes do Brasil.  Caninana: a foto estampada na página mostrava uma cobra preta com manchas amarelas.

Preferiu não falar nada para a esposa, não deveria preocupá-la à toa. São apenas insetos bonitos e inofensivos. Mas, senão, seria um bom pai, mais próximo do que o seu fora, viúvo passaria o tempo dedicado à fazenda e ao filho. Besteira, são apenas borboletas.

O parto foi prematuro, três semanas antes do previsto. A bolsa estourou de repente e sem médico em Mondaco dependeram de uma velha parteira, irmã mais nova da mulher que fizera o seu parto. Aurélio ficou inquieto durante todo o tempo, andava de um lado para outro na casa, andava pelo quintal, minutos passaram-se como horas.

— Dona Rosa está bem? Minha mulher está bem? Responda! — disse energicamente ao avistar a parteira sair do quarto do casal. A velha estava séria e o cansaço do trabalho realizado estampava a sua face.

— Sua mulher está bem, Seu Aurélio. — hesitou, desviando o rosto de seu olhar. — Mas o bebê nasceu sem vida.

O pequeno corpo foi enterrado na própria fazenda no dia seguinte. Menina, iria chamar-se Joana, como a avó. Seguiram-se dias onde o silencio dominava o interior da casa. E depois, o vazio. Rosa foi embora sem aviso, sem dizer uma palavra, sentia-se cansada e traída pelas superstições do marido, precisava fugir daquele lugar amaldiçoado.

* * *

Imerso no trabalho da fazenda, meia década se passou, a tia morreu de doença semelhante a da mãe — e sem aviso das borboletas. Seu Aurélio não tinha mais tempo para essas coisas, ocupava-se de todos os negócios, tendo pleno domínio da contabilidade das safras e das cabeças de gado; conhecendo também os segredos da terra que fazem a diferença entre um bom e um ótimo ano.

As borboletas azuis e verdes trazidas de fora desapareceram, ainda assim as colheitas ficavam cada vez mais fartas, os contratos mais vantajosos, e Aurélio era cada vez mais o mestre do seu ofício.

Seu aniversário de trinta e cinco anos não foi comemorado, preferiu passar o dia trabalhando, como sempre fazia desde a morte da menina. No fim do dia passou a mirar o espelho, estava ficando velho, seu rosto queimado pelo sol tinha manchas e algumas rugas, a barba crescida não apresentava falhas e as entradas no couro cabeludo começavam a ganhar terreno. — Um rosto forjado pela terra. — disse a si mesmo. Parada na parede, viu sob a sua cabeça o reflexo de uma borboleta. — E para a terra há de voltar. Maldita! — gritou, virando-se rapidamente e esmagou o inseto com a palma da mão. Ficou um tempo olhando para a gosma em seus dedos e para o resto da criatura de asas pretas.

Não se deixou abater, nenhum dos trabalhadores notou qualquer mudança em suas atitudes, continuou a administrar a propriedade com afinco, o segredo devia ser esse: matar o mensageiro do diabo antes que ele te mate.

Os meses passaram e restava uma semana para que completasse trinta e seis anos, foi quando a insônia lhe sobreveio. Virava o corpo para a direita, para a esquerda, deitava de costas, mas não era capaz de adormecer. Quando o corpo desfalecia alguns minutos pelo cansaço, acordava com uma terrível sede, o coração batia loucamente, respirava fundo e apenas de boca aberta, a sensação de opressão o dominava. Passou a semana sem conseguir dissipar esse mal.

Ao acordar na antevéspera de seu aniversário reparou-se no espelho: os olhos inchados, enormes, estava pálido, o rosto parecia cavado, sem expressão, como se o corpo e alma estivessem separados por alguns acres.

– Depois de amanhã, a esta mesma hora, estarei morto. — balbuciou a si mesmo.

No dia seguinte acordou sereno, toda a angústia desaparecera. Não morreria, estava certo disso. Sobreviveu o ano todo, havia vencido a sorte. Os sentimentos de opressão foram substituídos por nostalgia, lembrava-se da avó, mulher sábia. O quarto de Dona Assunção, transformado em memorial para as tralhas que iam acumulando na casa, ainda conservava o baú com as lembranças da família. Diversas fotos de sua mãe, criança e jovem. Uma foto emoldurada do casamento dos avós: Seu Aurélio, mais baixo que a esposa, teve que subir em um tijolo para ficar mais alto na foto; a calda do vestido escondeu o truque — confissão que ouviu da própria velha quando ele era bem menino, nunca se esqueceu. A espingarda do avô não estava no lugar de costume — onde estaria? — a descobriu encostada em um dos cantos do quarto, havia perdido totalmente o brilho. Resolveu poli-la. O brilho aos poucos foi voltando para a arma, queria deixá-la novamente em posição de destaque no cômodo. Súbito um brilho e um estampido. Teria se lembrado, se tivesse tempo, que por diversas vezes teve que demover a tia, em seus delírios degenerativos, de dormir com uma arma carregada a seu lado — tinha medo de ser atacada por onças e lobisomens — parece que a vigília do sobrinho não foi suficiente. A bala alojou-se em seu peito, levando consigo o último dos Assunção — assassinos de cobras e borboletas mágicas.

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